A escrita que ensaia

CARLOS SKLIAR

Ensaiar a escrita

Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

Lugar: Rio de Janeiro; Año: 2021; p. 11 - 19

Creio pertencer àqueles tempos – reais ou não, o que importa agora? – em que acreditávamos ou desejávamos, como escreve Bernhard Schlink (2007), que todo o bom era também verdadeiro e bonito, e o mal era falso e feio. Com o passar dos anos, me neguei a pensar de outro modo, ainda que o mundo tenha se obstinado em se mostrar também em sua falsidade e fealdade e o bom deixasse de ser o bondoso e o belo, encurralado pela insistência das bombas, pela humilhação e pela hipocrisia. Com o passar do tempo, a pessoa vai perdendo a precisão sobre qual é o problema, se é que há, e de quem é, se é quem é de alguém: se do que sobrevém como indício de inevitável progresso – essa flecha tensa que nos empurra para frente, isto é, ao pé de um alcantilado e então à morte –, se da rebeldia frente a um tempo que acomete contra todo vestígio do passado ou de quem envelhece e se sente empalidecer por suas novas e definitivas ignorâncias. Ou simplesmente ter-se-á que dar de ombros e dizer “assim são as coisas”. Mas já sabemos o que ocorre quando alguém com voz rendida pensa que “assim são as coisas”: toda redondez vira teimoso quadrado, a chuva fina se torna torrencial, os caminhos se convertem em fronteiras, e a ternura demora muito a regressar. Ocorre exatamente o mesmo quando dizemos que algo é “normal”.