INVESTIGADORES
SILVEIRA Maria Laura
capítulos de libros
Título:
Economia urbana hoje: categorias necessárias para sua compreensão
Autor/es:
SILVEIRA, MARÍA LAURA
Libro:
Território, economia urbana e conflitos territoriais
Editorial:
Letra Capital
Referencias:
Lugar: Rio de Janeiro; Año: 2019; p. 17 - 35
Resumen:
Face à complexidade do mundo contemporâneo, parece tornar-se mais árduo hoje do que em períodos anteriores apreender a totalidade. Em outras palavras, a aceleração dos processos, a sofisticação dos objetos técnicos, a dissociação entre agentes e ações, as normatizações, o poder das finanças e da informação desenham a atual divisão territorial do trabalho e, tantas vezes, nos afastam da compreensão do real total. É nesse contexto que estamos chamados a explicar os atuais processos de urbanização e as respectivas cidades e redes urbanas, entendidas como totalidades concretas num permanente movimento de totalização, tal como definido por Sartre (1979).Quando Karel Kosik (1976, p. 40) elabora uma noção de totalidade concreta assevera que, por essa via, ?cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo?. Desse modo, podemos reconhecer a necessidade de entender a urbanização e a cidade como fenômenos históricos, ao mesmo tempo como processos e como resultados em processo, evitando o atraente atalho de descrever a cidade como um mero resultado. Nesse quadro, nosso desafio seria enfrentar uma análise que possa cindir os fenômenos sem mutilar seus nexos. Por isso resulta oportuno lembrar que Milton Santos (1994) propõe abordar o fenômeno urbano a partir de dois planos de análise: uma economia política da urbanização e uma economia política da cidade. A primeira busca compreender a forma pela qual são distribuídos os capitais, os homens e os instrumentos de trabalho numa divisão territorial do trabalho, cujo estudo permite responder como, onde e por que se formam aglomerações. Já a segunda preocupa-se com o entendimento de como esses homens, capitais e técnicas encontram seu lugar na cidade. É a necessidade de compreender a formação socioespacial (Santos, 1977; Silveira 2014) e a cidade como duas ordens espaciais interdependentes.Nesse sentido, a economia política da urbanização permite ver, na formação socioespacial, a seletividade das forças da modernização nas suas formas e nos seus efeitos, isto é, que as variáveis modernas não são acolhidas nos lugares ao mesmo tempo nem na mesma direção, levando a uma inserção diferencial das porções do país na divisão territorial do trabalho. No entanto, esses processos se desenvolvem sobre um espaço já organizado a partir de profundas diferenças de renda e, portanto, de consumo, e com diferentes custos dos fatores de produção, isto é, com desigual capacidade de produzir e de agregar valor à produção. O resultado é uma hierarquia das atividades pré-existentes e uma tendência à hierarquização das atividades novas. Nesse retrato o consumo pode ser entendido como uma força de dispersão e a produção, como uma força de concentração. Ambas as forças realizam-se de modo segmentado. A cada momento da história, reconhecemos uma modernização ou, mais precisamente, várias modernizações sucessivas e coexistentes (Santos, 1972), que nos levam a concordar com Meschonnic (1988) quando, debruçado sobre a modernidade, afirma que o plural é de rigor. É, portanto, de modernidades que estamos falando.Poderíamos esboçar um breve retrato dessas duas ordens espaciais no período da globalização. Em primeiro lugar, mencionamos a difusão do fenômeno urbano, evidenciada pela aceleração da urbanização, mas também da metropolização que é um resultado da revolução do consumo (Santos, 1994). Ao mesmo tempo crescem as cidades médias e ganham importância certas cidades locais e cidades de fronteira, consequência da difusão concentrada e localizada da produção, assim como da desigualdade na macroeconomia dos países com fronteiras comuns. Em segundo lugar, assistimos ao gigantismo da mancha urbana, que um autor como Drakakis-Smith (1987) discute a partir da ideia de regiões metropolitanas estendidas. Em terceiro lugar, assinalamos a formação de cidades e metrópoles corporativas (Santos, 1990, p. 95), nas quais "o essencial do esforço de equipamento é primordialmente feito para o serviço das empresas hegemônicas" e "o que porventura interessa às demais empresas e ao grosso da população é praticamente o residual na elaboração dos orçamentos públicos". No entanto, cabe lembrar a reflexão de Simmel (2006) quando asseverava que as formas do conhecimento científico são formações históricas e, por isso, nunca recolhem de maneira completamente adequada a totalidade de conteúdos do mundo. Trata-se, muitas vezes, de ideias pré-estabelecidas ou categorias nascidas num momento da totalidade ou fundadas na observação de um fragmento dela, isto é, cristalizações da totalidade. Podemos mencionar aqui os dualismos tecnológicos, morfológicos, sociológicos, econômicos e, fundamentalmente, a noção de setor informal, mais recentemente retomada a partir do proletariado informal de Mike Davis (2006) ou da second economy, uma economia estruturalmente desintegrada da primeira economia, tal como apareceu no discurso do Presidente Thabo Mbeki´s na África do Sul em 2003 e nos trabalhos de Reynolds e Van Zyl (2006), Skinner (2006) e Rogerson (2007). Parece também recorrente a concepção de que a modernidade é um atributo da metrópole e que unicamente a partir desta se espraiaria para o resto do território, revelando uma percepção ultrapassada da hierarquia urbana e ignorando os dinamismos do meio técnico-científico-informacional. O entendimento da técnica ou da modernidade como absolutos pode derivar em determinismos de nova natureza, desconsiderando como rumo da política boa parte dos homens, dos capitais e das técnicas.Há, portanto, sempre o risco de tomar a parte pela totalidade, o fragmento como sendo a totalidade. Daí a nossa insistência em abordar o urbano e a economia urbana como fenômenos. Maffesoli (1997) podia escrever que o principal é o que aparece, isto é, o fenômeno, e o trabalho do pensamento é sublinhar todas suas características.A cidade pode ser entendida como uma pluralidade de divisões territoriais do trabalho superpostas. Entretanto, não vemos todas essas existências, percebemos apenas alguns fenômenos, cuja apreensão poderia ser feita por meio das categorias de circuitos da economia urbana. Longe de compor uma dualidade, o circuito superior e o circuito inferior revelam sua existência unitária e sua oposição dialética. A existência unitária refere-se à reciprocidade de influências entre os agentes ou, em outras palavras, se um circuito não influísse no outro não haveria fenômeno urbano, uma vez que os circuitos não são estanques, são vasos comunicantes do espaço e da economia. Não esqueçamos que partagé, adjetivo utilizado por Milton Santos (1975) para referir-se ao espaço no título do seu livro escrito originalmente em francês, significa, ao mesmo tempo, dividido e compartilhado. A origem dos circuitos explica essa existência unitária, já que eles advêm das sucessivas modernizações capitalistas, técnicas e organizacionais, associadas às profundas desigualdades na distribuição da renda. Os circuitos são o modo de existência da cidade submetida a tais modernizações. Não têm origem nem existência independente e, por isso, cada circuito per se carece de autonomia de significado.A oposição dialética significa que um circuito não se define sem o outro. Há entre eles complementaridade, pois um circuito é oposto ao outro nessa relação que, para o inferior, é uma relação de subordinação. Isto significa dizer que o valor dos circuitos é relacional, incluindo também a percepção dos seus limites. Em outras palavras e como já nos alertava Tilly (2000), limites e relações desiguais reforçam-se reciprocamente. Cabe aqui lembrar que os graus de tecnologia, capital e organização não são alheios à especificidade técnica e econômica da atividade nem tampouco às condições do lugar. Portanto, os circuitos poderiam ser definidos e identificados a partir dessas duas condições.Cada circuito tem características próprias e distintivas, extraídas do real a partir dessa visão unitária e teorizadas como elementos constitutivos que permitem defini-lo e explicar seu arranjo. Tais características conferem a cada circuito coerência interna e o diferenciam do seu oposto, fazendo dele um objeto de pensamento ou uma categoria analítica, que pode ser operacionalizada a partir do meio construído urbano, do sistema técnico, da organização, do consumo, das migrações e dos graus de capitalização. Contudo, entre os circuitos há nexos, também extraídos do real a partir dessa visão unitária e teorizados como elementos relacionais que possibilitam apreender a interdependência e a articulação de um circuito com outro. Assim, podemos compreender ambos os objetos de pensamento ou categorias analíticas, circuito superior e circuito inferior, como uma categoria sintética e unitária, isto é, o fenômeno urbano. Poderíamos, assim, reconhecer alguns desses nexos: a complementaridade e disputa entre os circuitos num pedaço da cidade ou na rede urbana, a expansão das redes comerciais e financeiras nas subcentralidades da cidade e na rede urbana, a financeirização da vida social e econômica, a existência de uma porção marginal no circuito superior, as formas de abastecimento e papel dos atacadistas. Em definitivo a pergunta pelos nexos é a pergunta pela integração. Onde se articulam os circuitos? Na metrópole, na cidade média, na rede urbana? Aqui parece oportuno aceitar o conselho de Bourdieu et al. (2011) quando afirma que a consciência da unidade do objeto de pesquisa leva a uma vigilância epistemológica para não separar o indissociável e pôr de relevo as relações que ontologicamente unem o que provisoriamente e metodologicamente foi cindido.Nesse esforço de teorização, identificamos categorias gerais, sem as quais o pensamento não se desenvolve tais como constituição, relação, conflito, cooperação, movimento e oposição (sempre vista como uma forma de movimento). Tais categorias são alicerces para elaborar um esquema de interpretação, feito de conceitos e variáveis como circuitos, técnicas e normas, entre outros, que guiará a aplicação de procedimentos. Estes permitirão a análise dos ramos, das características regionais, dos casos particulares e mesmo a elaboração de tipologias, lembrando com Schutz (1974) que todos os tipos são termos relacionais. São momentos da análise que separam o que no início do processo histórico é uma coisa só. Daí a importância de que nem os conceitos nem os procedimentos mutilem os nexos. Assim, podemos compreender que as modernizações fazem da cidade um espaço dividido, em outras palavras, um espaço constituído por distintos circuitos de produção e consumo. É o caminho de ir alcançando sínteses explicativas nas quais os conceitos iniciais diluem-se em novos conceitos. Por isso, a análise do fenômeno urbano nas cidades dos países periféricos autoriza o uso de um par de novos conceitos: urbanização corporativa e cidade corporativa (Santos, 1990), cuja urdidura é feita de múltiplos circuitos de produção e consumo.